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novembro, 2022

#praticaindependente #cultura #artecontemporanea
Clara Sampaio

Começar um arquivo

Em 2017, no início do meu doutoramento na Universidade de Coimbra, pensei em desenvolver, como forma de materializar a pesquisa que seria realizada sobre espaços independentes, um projeto de uma exposição que conectaria artistas-curadoras brasileiras e portuguesas, e suas produções. O objetivo dessa proposta era o de criar uma sistematização sobre tal prática, para poder analisar suas particularidades e diferenças, e criar um vocabulário comum como ferramenta analítica.

Essa ideia, contudo, se transformou com os passar dos anos em outro projeto, que julguei mais adequado ao fim que eu gostaria de dar à investigação. E assim ficou: gerar uma contribuição para o campo da arte contemporânea por meio de uma ferramenta que depois pudesse crescer, se atualizar, inspirar outras iniciativas do tipo.

Assim, talvez pela primeira vez, entendendo o meu lugar de origem como potência – um entendimento que demorou anos para ser sedimentado, uma vez que que o fato de estar fora dos centros de produção brasileiros sempre foi objeto de incômodo e comparação – percebi a importância de desenhar um projeto que valorizasse a memória da produção
artística do meu estado, o Espírito Santo.

Imaginar

Em um primeiro momento, quis imaginar o arquivo. Visualizava-o como um desenho inspirado nas seções obtidas pela chamada dendrocronologia (do grego, dendron (árvore), kronos (tempo) e logos (conhecimento)), técnica que permite a datação da idade de uma árvore. Nessa forma de representação, círculos concêntricos surgem a partir da medula (idade de formação) e se expandem até a extremidade do tronco. A distância entre os círculos permite avaliar uma série de fatores, como épocas chuvosas ou secas, e as cicatrizes causadas por agentes externos. Definindo o ano de início e os intervalos temporais a serem analisados, a representação adotaria cada círculo como um período. 

Para apresentar as colaborações que o fariam possível, imaginei uma constelação. De um ponto ao outro, desenharíamos uma rede de contatos, um convocaria outro, como uma reação em cadeia. Logo teríamos uma espécie de mapa, em que se seria possível visualizar como o arquivo foi se constituindo. 

Sempre quis que esse projeto fosse pensado como um processo em construção; feito a muitas mãos. Gosto de pensar que seu aspecto inacabado nada tem a ver com precariedade ou falha; mas justamente, permite que ele assuma formatos diversos, vá crescendo para vários lados; sem nunca chegar a uma forma completa. 

Fui convocando pouco a pouco essas imagens, o cosmos, a árvore, a organismo, como forma de dar corpo ao que viria a seguir. Essa forma de pensar o arquivo está intrinsecamente ligada ao fato de este ter sido idealizado por artistas. Criar sentido a partir da visualidade, como campo de produção de sentidos, e subverter alguns códigos e linguagens pré-estabelecidos, está no cerne da nossa forma de pensar o mundo e produzir conhecimento.

Por isso, o Arquivo Independente é proposto como arquivo vivo, elástico. Pode preservar assuntos do passado e também ser composto por novas contribuições; que querem preencher lacunas sobre eventos que já aconteceram e tensionar a memória sobre esses e outros que virão.

 

Investigar 

Realizando um trabalho de base, inédito no estado, o projeto se propõe como a primeira fase de implementação de uma plataforma online cujo objetivo central é o de reunir produções textuais e visuais que atravessam a produção de arte contemporânea e cultura do estado. 

Rompendo com uma estrutura mais tradicional de organização de acervos, a plataforma mapeia e convoca colaborações constantes, realizando ações temáticas ao redor dos conteúdos disponibilizados. Planejado para ser executado em fases distintas, com previsão de um primeiro ciclo com 5 anos de duração, desejamos que esse projeto torne mais visível o grande trabalho que tem sido desenvolvido por coletivos artísticos e espaços alternativos de cultura, os chamados organismos independentes. Em 2022, realizamos o mapeamento, contato e trabalho de organização preliminar de acervos de dez grupos baseados no Espírito Santo, apoiados com uma ajuda de custo.

Com isso, temos como intenção não só beneficiar o público em geral, ao sistematizar e facilitar o acesso a tais conteúdos, mas também pesquisadoras e pessoas interessadas, que poderão encontrar, no material coletado e tratado, informações de referência para pesquisas com diversos fins, sejam acadêmicos ou artísticos, disponibilizadas de forma estratégica por meio de informações sobre projetos culturais passados e atuais. Além disso, realizamos uma série de encontros e oficinas, com o objetivo de abrir o processo de construção do arquivo para mais pessoas, facilitar a partilha de experiências e referências; unir projetos afins localizados em diversas partes do país.

Uma ação crucial de conexão com outros projetos é a articulação via Instagram, uma estratégia de mapeamento e de contato que já nos aproximou de diversas iniciativas desde o seu lançamento no final do primeiro semestre de 2022.

Após um trabalho de investigação que durou cerca de um ano, buscamos dados sobre projetos semelhantes em outros estados e em países da América Latina e Europa. Felizmente, nos deparamos com muitas iniciativas potentes; a lista é grande, mas como não mencionar os Archivos en uso, da Rede Conceptualismos del Sur, os ensaios e projetos da L’Internationale, e no Brasil, projetos como o Fórum Permanente, com coordenação de Martin Grossmann, Desarquivo de Cristina Freire, não caber e Revista Urbânia de Graziela Kunsch?

Observamos que projetos de arquivo ou plataformas culturais costumam ser impulsionados com ajuda de financiamentos diretos do Estado, em instituições públicas como Universidades e Fundações, ou privadas, quando ligadas a museus e outros espaços culturais. Se por um lado é bastante interessante que haja recursos financeiros suficientes para gerar uma estrutura de arquivo, com toda a complexidade que essa ação pode implicar, por outro, estes costumam estar subordinados ao tempo de gestão e às mudanças políticas. 

Assim, como um diferencial dessa prática, o Arquivo independente se propõe, conforme o nome sugere, como uma ferramenta autônoma, mutante, que atua em parceria com diversas entidades, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, de forma a ser o mais permeável e perene possível. Convocar a forma de um organismo mutante aqui é fundamental: a adaptação é uma peça-chave para que esse arquivo possa continuar existindo.

Entendemos que para construir novas perspectivas para a produção artística, é essencial haver um registro consistente de tal trajetória. Para que ampliemos o espaço para o debate de questões urgentes da sociedade contemporânea, é interessante desenharmos formas de unir informações hoje fragmentadas, conectar pessoas, apoiar processos de registro e documentação. 

Temos como objetivo principal sedimentar as relações na comunidade artística local, acreditando na formação do público e no fortalecimento de uma rede de figuras atuantes (artistas, curadores, críticos, educadores, produtores) na cena de arte contemporânea.

 Para situar a motivação política por detrás do projeto, trazemos alguns dados. Com a criação do Fundo de Cultura do Estado do Espírito Santo (Funcultura), em 2009, por meio da Lei Complementar nº 458 de 21/10/2008, o Espírito Santo passou a investir progressivamente no setor cultural: em 2009, o investimento total somou 2 milhões de reais e em 2012, 7 milhões. A principal via de acesso aos recursos disponibilizados anualmente são editais públicos, em que se objetiva identificar e selecionar projetos de “interesse público e de forte impacto social (…) podendo assim, identificar demandas ainda pouco explícitas e, ao mesmo tempo, estimular a inovação, a experimentação, novas proposições e abordagens criativas de questões culturais contemporâneas”.

Um estudo realizado por meio do Plano Estadual de Cultura (PEC-ES, 2013-2023, p.104), em 2016, identificou uma série de desafios, dos quais destacamos:

  1. Baixa oferta de formação e capacitação e ausência de uma política de formação artística e cultural continuada e descentralizada.
  2. Insuficiência de mapeamentos das diferentes expressões culturais do Espírito Santo.
  3. Dados sobre a gestão cultural encontram-se dispersos e defasados.
  4. Concentração dos equipamentos culturais na Região Metropolitana.
  5. Baixa presença de conteúdo local nos canais de comunicação existentes.

 Para compensar, de certa forma, a escassez das atividades culturais no estado, organismos como coletivos, galerias de arte, espaços independentes, grupos de teatro e outros, ligados ou não à Universidade, costumam propor em suas programações atividades imersivas e de formação. Um cenário que não é, de forma alguma, particular ao Espírito Santo.

 Identificamos que a documentação deficiente sobre esses projetos, poucas vezes acompanhados de registro e reflexão crítica sobre tais eventos realizados e/ou iniciativas existentes, contribui para uma sensação generalizada de falta de trajetória e tradição, de pouca programação ou baixo investimento, e interesse no setor. Entendemos que em alguns casos, isso se deve justamente à falta de recursos disponíveis ou de pensamento estratégico direcionado para esse fim. Tal fato dificulta o acesso e acaba por descentralizar certas informações; e, como consequência, contribui para perda futura dessa documentação.

 Resgatando a motivação inicial desse projeto, iniciado oficialmente no contexto urgente da pandemia, entendemos as fragilidades mencionadas como uma oportunidade para rever procedimentos e avistar no horizonte soluções que andem de mãos dadas com projetos artísticos e culturais. Apostando pela memória como fio condutor do projeto, reforçamos a ideia que é preciso conhecer o passado e atentar ao presente para escrever o futuro.