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novembro, 2022

#artecontemporanea #memoria
Larissa Megre

Combustível

A memória, campo de intermináveis disputas, perdura pelo tempo enquanto fonte de conhecimento e desconfiança. Conscientemente, ou não, buscamos pelos que vieram antes de nós para nos firmarmos enquanto seres que habitam o presente. A memória carrega consigo partes do que somos hoje. Olho para você agora, penso em quem você foi e me projeto em seu futuro, mas, é preciso pensar: quem é você nesse instante? 

O presente parece pegar a pior fatia na sucessão da temporalidade: antes estávamos muito dominados pelo passado, hoje estamos muito exigidos pelo futuro. O presente se encontra estrangulado entre o passado e o futuro. O presente é de uma volatilidade extrema. (1) (GONZALO, 2007, p. 61 e 62, tradução nossa) 

É necessário olhar a atualidade como tempo válido e não como corredor entre portas. O que é o agora? Não se trata de condenar a ternura com o que já foi: abrandar os espíritos para que a desesperança não faça morada em nós tem sua importância, pois “a esperança é um músculo” (2), e a memória também. Devemos estimulá-la para que se mantenha viva. Não significa negar o sonho, tão importante para a construção dos projetos de futuro, que precisam de um pouco de ambição para acender os ânimos e desejos.

Todavia, há de se reconhecer que “(…) a memória é uma ferramenta com a qual se faz conexões, mas ela pode estar inundada em nostalgia. Em que momento a dependência do passado impede a transição para uma visão independente do presente e do futuro?” (3) (LIPPARD, 1990, p. 155 e 156, tradução nossa).

Sugere-se aqui, portanto, a estratégia de perceber a temporalidade por meio de uma perspectiva ampliada, na qual passado, presente e futuro se dão em relações de interdependência. Esta mecânica toma forma quando se dá consciência ao presente, e é nessa instância temporal que o arquivo faz girar as engrenagens da memória. 

Em outras palavras, o ato de criar registros e arquivá-los incorpora uma camada de reflexão sobre experiências recentes ou em andamento. Há, na contemplação e organização desses materiais, um momento para processamento interno e rearranjo de ideias e impressões que, possivelmente, encontravam-se esparsas até então. Esse processamento, entretanto, nunca se encontra finalizado, uma vez que nós, enquanto indivíduos e integrantes de coletividades maiores, estamos em constante processo de mudança. O que se deseja aqui, ao se propor a produção de arquivos como forma de ocupar o presente, é o constante exercício de análise das memórias que são por nós construídas e consumidas. É através de um olhar mais desconfiado que as neblinas nostálgicas são dissipadas.

Consequentemente, traçam-se futuros nos quais é possível repensar o passado e delinear novas possibilidades. O que se faz hoje poderá ser faísca para o que ainda será. As memórias que guardamos e os arquivos que produzimos serão, nesse sentido, nossos presentes para os que virão depois de nós. Sendo assim, sejamos generosos.

 

Imagem 1: Diagrama “Zona de Influência dos Arquivos”. Desenho da autora.

Para uma representação visual dessa postura com relação à criação de arquivos e temporalidade, foi produzido um diagrama. O ciclo temporal é simbolizado por uma elipse cujos contornos encontram-se abertos, ou apenas esboçados, representando as incertezas e suposições relativas ao ciclo presente-passado-futuro. Delimita-se aqui, em azul, a “Zona de Influência dos Arquivos”, que engloba a elipse em sua totalidade. Isso ocorre pois os arquivos refletem diretamente sobre nossas percepções para com eventos históricos, modificando, inclusive, noções pré-determinadas e consideradas “solucionadas” ou registradas por completo sobre acontecimentos passados. O mesmo sucede com relação às referências que carregamos em nossos projetos atuais e naqueles que ainda se concretizarão. 

O arquivo se torna, desse modo, uma caixa na qual as memórias tomam formatos ordenados ou idealmente compreensíveis (4), a qual acessamos para fins diversos através do tempo. A História não se constrói de maneira uniforme e regular, portanto não é viável esperar que seu processo de registro assim seja feito. O Sul Global e, no caso brasileiro, a América Latina, vive diariamente as consequências de ter sua história contada por aqueles que são indiferentes ao apagamento histórico, cultural e simbólico de outros grupos. 

Aqueles dos grupos dominantes desvalorizam histórias por diferentes razões: inundados por textos, compreendendo-se enquanto parte da “história”, eles estão confiantes de que suas histórias serão contadas para eles, e é menos provável que compreendam a significância crucial da memória pessoal/comunitária. (5) (LIPPARD, 1990, p. 101 e 102, tradução nossa).

É possível, entretanto, navegar este mar turbulento segurando o timão com as próprias mãos. Criar arquivos, é claro, não demanda apenas coragem ou interesse, mas também, e principalmente, recursos: acesso a tecnologias, espaço e capital. É preciso reavaliar métodos e refletir sobre o que é possível naquele momento. Pergunte-se: o que está ao meu alcance agora? E tome essa resposta como ponto de partida. 

Destacam-se aqui dois caminhos para esta trajetória: adentrar os espaços e métodos dados enquanto “oficiais” e/ou explorar as margens. Na primeira opção, as normas, os espaços educacionais e expositivos convencionais são explorados a partir de suas lógicas internas para fins outros. Neste caso, a finalidade é que histórias subestimadas ou renegadas sejam integradas aos sistemas os quais, por tantos séculos, dedicaram-se somente ao resguardo e restauração de arquivos de setores específicos da sociedade (as elites políticas e religiosas, por exemplo). Na segunda alternativa, aqueles que se encontram na posição marginalizada exploram a mesma condição na idealização de seus arquivos, tensionando suas estruturas e materialidades. Websites, xerox, oralidades, recortes, instalações, performances, dentre outros, compõem alguns dos caminhos potenciais. Em suma, busca-se experimentar com o arquivo, ou ainda, nas palavras da pesquisadora e arquiteta Gabi Pires, hackeá-lo. 

Esse estado de constante estranhamento que é o apagamento histórico nos coloca em postura atenta, de quem vê esperança luminosa nas caixas encardidas e empoeiradas do fundo da última prateleira. Quem sabe estaremos lá, preservados pelo esquecimento… Mas, e se não? Resta-nos, portanto, criar nossos arquivos, contar nossas histórias e ser ponte para aqueles que possuem o mesmo desejo. 

Que a insatisfação nos sirva de combustível. 

1. “El presente parece llevar la peor tajada en la sucesión de la temporalidad: antes estábamos muy dominados por el pasado, hoy estamos muy exigidos por el futuro. El presente queda estrangulado entre el pasado y el futuro. El presente es de una volatilidad extrema”. (GONZALO, 2007).

2. No original: “Hope is a muscle”. BJÖRK. Atopos. One Little Indian Records: 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9FD2mUonh5s>.

3. “(…) memory is a tool with which to make connections, but it can be swamped in nostalgia. At what point does dependence on the past preclude transition into an independent view of the present and future?”. (LIPPARD, 1990, p. 101 e 102).

4- Os métodos padronizados de arquivamento podem realizar esta organização, mas não se exclui aqui a relevância de métodos alternativos ou do contato com arquivos corrompidos, incompreensíveis ou maculados.

5- “Those in the dominant groups devalue stories for different reasons; inundated by texts, perceiving themselves as part of ‘history’, they are confident that their stories will be told for them, and they are less likely to understand the crucial significance of personal/communal memory”. (LIPPARD, 1990, p. 101 e 102).

Referências

GONZALO, Sánchez Gómez. “Memoria, imagen y duelo: conversaciones entre una artista y un historiador.” Análisis político (Bogotá, Colombia), no. 60 (May-August, 2007): 60- 90.

LIPPARD, Lucy R. “Mixing”. In: Mixed Blessings. New Art in a Multicultural America. New York: Pantheon Books, 1990, p. 151-197.