A memória, campo de intermináveis disputas, perdura pelo tempo enquanto fonte de conhecimento e desconfiança. Conscientemente, ou não, buscamos pelos que vieram antes de nós para nos firmarmos enquanto seres que habitam o presente. A memória carrega consigo partes do que somos hoje. Olho para você agora, penso em quem você foi e me projeto em seu futuro, mas, é preciso pensar: quem é você nesse instante?
O presente parece pegar a pior fatia na sucessão da temporalidade: antes estávamos muito dominados pelo passado, hoje estamos muito exigidos pelo futuro. O presente se encontra estrangulado entre o passado e o futuro. O presente é de uma volatilidade extrema. (1) (GONZALO, 2007, p. 61 e 62, tradução nossa)
É necessário olhar a atualidade como tempo válido e não como corredor entre portas. O que é o agora? Não se trata de condenar a ternura com o que já foi: abrandar os espíritos para que a desesperança não faça morada em nós tem sua importância, pois “a esperança é um músculo” (2), e a memória também. Devemos estimulá-la para que se mantenha viva. Não significa negar o sonho, tão importante para a construção dos projetos de futuro, que precisam de um pouco de ambição para acender os ânimos e desejos.
Todavia, há de se reconhecer que “(…) a memória é uma ferramenta com a qual se faz conexões, mas ela pode estar inundada em nostalgia. Em que momento a dependência do passado impede a transição para uma visão independente do presente e do futuro?” (3) (LIPPARD, 1990, p. 155 e 156, tradução nossa).
Sugere-se aqui, portanto, a estratégia de perceber a temporalidade por meio de uma perspectiva ampliada, na qual passado, presente e futuro se dão em relações de interdependência. Esta mecânica toma forma quando se dá consciência ao presente, e é nessa instância temporal que o arquivo faz girar as engrenagens da memória.
Em outras palavras, o ato de criar registros e arquivá-los incorpora uma camada de reflexão sobre experiências recentes ou em andamento. Há, na contemplação e organização desses materiais, um momento para processamento interno e rearranjo de ideias e impressões que, possivelmente, encontravam-se esparsas até então. Esse processamento, entretanto, nunca se encontra finalizado, uma vez que nós, enquanto indivíduos e integrantes de coletividades maiores, estamos em constante processo de mudança. O que se deseja aqui, ao se propor a produção de arquivos como forma de ocupar o presente, é o constante exercício de análise das memórias que são por nós construídas e consumidas. É através de um olhar mais desconfiado que as neblinas nostálgicas são dissipadas.
Consequentemente, traçam-se futuros nos quais é possível repensar o passado e delinear novas possibilidades. O que se faz hoje poderá ser faísca para o que ainda será. As memórias que guardamos e os arquivos que produzimos serão, nesse sentido, nossos presentes para os que virão depois de nós. Sendo assim, sejamos generosos.
Para uma representação visual dessa postura com relação à criação de arquivos e temporalidade, foi produzido um diagrama. O ciclo temporal é simbolizado por uma elipse cujos contornos encontram-se abertos, ou apenas esboçados, representando as incertezas e suposições relativas ao ciclo presente-passado-futuro. Delimita-se aqui, em azul, a “Zona de Influência dos Arquivos”, que engloba a elipse em sua totalidade. Isso ocorre pois os arquivos refletem diretamente sobre nossas percepções para com eventos históricos, modificando, inclusive, noções pré-determinadas e consideradas “solucionadas” ou registradas por completo sobre acontecimentos passados. O mesmo sucede com relação às referências que carregamos em nossos projetos atuais e naqueles que ainda se concretizarão.
O arquivo se torna, desse modo, uma caixa na qual as memórias tomam formatos ordenados ou idealmente compreensíveis (4), a qual acessamos para fins diversos através do tempo. A História não se constrói de maneira uniforme e regular, portanto não é viável esperar que seu processo de registro assim seja feito. O Sul Global e, no caso brasileiro, a América Latina, vive diariamente as consequências de ter sua história contada por aqueles que são indiferentes ao apagamento histórico, cultural e simbólico de outros grupos.
Aqueles dos grupos dominantes desvalorizam histórias por diferentes razões: inundados por textos, compreendendo-se enquanto parte da “história”, eles estão confiantes de que suas histórias serão contadas para eles, e é menos provável que compreendam a significância crucial da memória pessoal/comunitária. (5) (LIPPARD, 1990, p. 101 e 102, tradução nossa).
É possível, entretanto, navegar este mar turbulento segurando o timão com as próprias mãos. Criar arquivos, é claro, não demanda apenas coragem ou interesse, mas também, e principalmente, recursos: acesso a tecnologias, espaço e capital. É preciso reavaliar métodos e refletir sobre o que é possível naquele momento. Pergunte-se: o que está ao meu alcance agora? E tome essa resposta como ponto de partida.
Destacam-se aqui dois caminhos para esta trajetória: adentrar os espaços e métodos dados enquanto “oficiais” e/ou explorar as margens. Na primeira opção, as normas, os espaços educacionais e expositivos convencionais são explorados a partir de suas lógicas internas para fins outros. Neste caso, a finalidade é que histórias subestimadas ou renegadas sejam integradas aos sistemas os quais, por tantos séculos, dedicaram-se somente ao resguardo e restauração de arquivos de setores específicos da sociedade (as elites políticas e religiosas, por exemplo). Na segunda alternativa, aqueles que se encontram na posição marginalizada exploram a mesma condição na idealização de seus arquivos, tensionando suas estruturas e materialidades. Websites, xerox, oralidades, recortes, instalações, performances, dentre outros, compõem alguns dos caminhos potenciais. Em suma, busca-se experimentar com o arquivo, ou ainda, nas palavras da pesquisadora e arquiteta Gabi Pires, hackeá-lo.
Esse estado de constante estranhamento que é o apagamento histórico nos coloca em postura atenta, de quem vê esperança luminosa nas caixas encardidas e empoeiradas do fundo da última prateleira. Quem sabe estaremos lá, preservados pelo esquecimento… Mas, e se não? Resta-nos, portanto, criar nossos arquivos, contar nossas histórias e ser ponte para aqueles que possuem o mesmo desejo.
Que a insatisfação nos sirva de combustível.