Textos

novembro, 2022

Phoebe Coiote

Dez passos olhando para frente, onze passos olhando para trás: arquivos, amnesemania e agências do sensível

Nomear, lembrar, esquecer é um ciclo que se repete em todas as sociedades, mesmo as sociedades ágrafas tinham forma de nomear as coisas, de registrar e também de silenciar. (BORGES, 2021)

O gesto de arquivar tem o mesmo gosto, cheiro, textura, sonoridade e visualidade dos gestos de inscrição do meu corpo no mundo. 

Com recorrência, esse gesto se apresenta em sua faceta historiográfica e, em sua inevitabilidade, evoca em nós uma vontade não unicamente de continuidade da memória, mas nos apresenta o que cunho aqui como amnesemania: uma compulsão pelo esquecimento, condicionada socialmente ou voluntária, mas sempre coletiva.

A amnesemania é um órgão social, um agente, que com suas funções específicas de manutenção dos silêncios e invisibilidades, mobiliza ataques estruturais à multiplicidade e à diferença, fazendo perdurar estruturas de saber traumatizantes (e até fatais) às nossas subjetividades. 

Em oposição a esse esquecimento, Ana Pato nos lembra que o gesto de arquivar vem de um

[…] desejo de expor estruturas, políticas e discursos, que se revelam, não somente, mas com enorme força, nos arquivos históricos e espaços de memória. (PATO, 2015, apud SCOTT, 2008)

Assim, giramos uma chave que nos força a enfrentar o campo de disputa de políticas de memória e arquivo, que configuram em si o esquecimento e desenvolvem um abscesso amnesemaníaco: nos defrontamos com métodos, escolhas e gestões de preservação da memória que tem suas escolhas maquinadas por aqueles que escolhem não lembrar e por aquilo que se escolheu esquecer.

Desta forma, esquecer não é a única característica da amnesemania. Enquanto um fenômeno social, ela tão antiga quanto a colonialidade que chegou com as embarcações invasoras. O esquecimento produz falácias sobre tudo e todas que são condicionadas à margem, forçando-nos a um coma colonial do qual muito recentemente começamos a irromper.

Ler um arquivo impresso em esquecimentos faz jorrar em sua leitora uma tradução das configurações amnesemaníacas. Há um processo que acontece como um convite (ou uma tentação) de ambas as partes: um Sim convidativo precede a leitura/acesso, já presente no corpo e no arquivo (ou no livro, como aponta Blanchot, 1955).

O corpo-arquivo é um lugar de disputa, em um encontro entre o que não apenas se identifica com o arquivo, mas o que parte dessa relação receptiva desde o primeiro olhar – o Sim -, e que se encontra entre o que o arquivo comunica, as metodologias arquivísticas embrutecedoras, os estatutos coloniais de verdade e a raiz comum dos gestos que expressam a liberdade da leitora (Flusser, 2014). 

Como uma máquina-tradutora, o corpo reescreve o arquivo e a si próprio com silêncios e invisibilidades, e este é o alerta. O arquivo, quando pensado a partir da ótica da exclusão, age expressivamente como estrutura capaz de moldar subjetividades, de embrutecer aquilo que é múltiplo, se valendo de ferramentas perversas da colonialidade, como o cissexismo e o racismo. Expor as estruturas amnesemaníacas é, intrinsecamente, refletir e propor caminhos para arquivos que se configuram a partir da rememoração de narrativas, identidades e corpos à margem, o que, em todos os casos, somente será possível quando estes corpos não sejam objeto de estudo, mas partes fundadoras de novas estruturas arquivísticas.

 

Referências

BLANCHOT, Maurice. A obra e a comunicação. In: –––––.O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 189-208.

FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume, 2014.

PATO, Ana Mattos Porto. Arte contemporânea e arquivo: reflexões sobre a 3a Bienal da Bahia. Revista CPC, [S. l.], n. 20, p. 112-136, 2015.

SILVA, Jamile Borges da. Memórias da dor: o patrimônio sensível da pandemia. Sul-Sul – Revista de Ciências Humanas e Sociais, [S. l.], v. 2, n. 01, p. 121–140, 2021.

Phoebe Coiote Degobi é travesti, curadora, artista-educadora e pesquisadora. Atualmente é mestranda pelo PPGArtes/UERJ na linha de pesquisa Arte, Imagem e Escrita. É curadora do ‘projetodeprojeções, co-organizadora do projeto de publicação e formação ‘arte | ética | crítica | escritura’ e curadora artística-educativa do ‘LAB. FORA: Laboratório de Formação em Arte’. Integra o coletivo FURTACOR.