Textos

agosto, 2023

#iurilopes #corpocaos #queer
Iuri Lopes

Relato Corpo Caos

O Corpo Caos (1) é uma expansão dos meus eus, de vontades reprimidas, medos e frustrações. Um processo de desconstruções/construções, da libertação (?) de várias amarras e bloqueios que durou anos. 

Ser uma pessoa não binária é quase como viver em uma utopia. É você sair da paranoia binária e entrar em outra. Antes eu me perguntava “sou homem ou mulher?”. Hoje me pergunto “quem sou eu?”. É um processo terapêutico? — Não sei. Descobrir me cura aos poucos. 

Sou muito curiosa, o saber me deixa satisfeita. Muitas amizades me perguntam que tipo de leituras eu faço, se gosto de livros de romance, ficção ou poesia. Sempre digo que não costumo ler essas literaturas. Gosto das teorias, dos textos acadêmicos, por ora. Já há algum tempo sei o porquê de ser fascinada por eles. Foi nestes textos que me revi e me identifiquei.

Sad but true.

Foi dentro dos textos quantitativos, qualitativos e exploratórios que eu soube um pouco mais sobre mim, sobre as minhas possibilidades. Saber que eu não teria de escolher entre masculino ou feminino, entre ser hétero ou gay. Sair desses binômios compulsivos me fez respirar mais tranquila.

Sou de uma cidade muito pequena no sul do Brasil. Uma cidade que se chama São Borja: primeira Redução Jesuítica cujo nome é uma homenagem (risos) ao cardeal Francisco de Borja. Uma cidade que faz fronteira com a Argentina e que não tem teatro, não tem cinema, não tem espaços expositivos plurais. Apenas uma memória colonial pouquíssimo questionada. Uma cidade que se autoatribui variadas distinções em busca de alguma legitimidade — já foi “terra dos presidentes” (2), já foi “terra de valor”(3) e, hoje, é a “capital do fandango”. 

Nunca foi um lugar fértil para mim.

Tive pouquíssimas referências dissidentes vivendo nesta cidade da minha infância até a vida adulta. Minha primeira amizade queer foi a minha cabeleireira, Bia Ifram. Ver esta mulher ocupando um espaço de poder, sendo empresária, sendo trans, sendo respeitada, me fez ver que havia, sim, possibilidades de afeto e projeção profissional para pessoas queer.

O imaginário queer apresentado para mim era marginal, invisibilizado e malparecido. 

Ainda estou no processo de resgaste da minha infância e da adolescência queer que me foram negadas. Hoje tenho a possibilidade de estar ao redor de pessoas queer, de conversar com elas para que possamos nos identificar e ver as semelhanças e as diferenças que nos aproximam. 

Foi durante a pandemia de Covid-19 que me localizei na não binariedade. Neste período, comecei a me desafiar no campo da criação artística.

Quando cheguei a Portugal para estudar, em 2015, iniciei uma formação em teatro promovida pela universidade na qual cursava o mestrado e pela companhia Asta – Teatro e outras artes. Ali pude experimentar o palco e co-criar a peça Sangue e Outras Substâncias. Foi incrível poder participar de todos os processos que compõem um trabalho artístico desta complexidade, com técnica de som, luzes, figurino, textos, coreografia e logística.  Saímos em tour com a Sangue pela Espanha e pelo Marrocos. Foram momentos incríveis de experimentação, crescimento pessoal e artístico. 

Depois, deixei Portugal pela primeira vez. Fui viver na Hungria, em Budapeste, local extremamente conservador e com uma exponencial política antidireitos LGBTQIAPN+. Neste período no leste europeu, consegui uma aproximação com as artes clássicas, ópera, pinturas e esculturas. Uma mistura de “velho mundo” e movimento neo na tentativa de reconstrução de tudo que foi destruído pelas guerras. 

Regressei para Portugal na retomada aos estudos, desta vez para um doutorado — outro processo amargo no meu percurso. Estar em uma universidade fundada em 1290 é excessivamente assustador, mais do que eu imaginava ser. 

Com o meu acúmulo de frustrações e a pandemia, fiquei isolada, apenas mantendo uma interação mínima com as pessoas e os espaços. Nesta reclusão em vários níveis, me prendi muito a leituras, filmes e overthinking. Em uma noite, assistindo ao documentário da cartunista brasileira Laerte (4), uma cena me marcou muito: o momento em que ela se olha no espelho e diz estar “velha, mas feliz”. Esta frase ficou martelando por dias na minha cabeça até eu entender que eu não precisava da validação de ninguém. Apenas da minha. Entender que eu não tinha que esperar para me identificar como uma pessoa não binária e usar os pronomes femininos para me determinar. 

Conversei muito com duas amigas, Clarissa Serafim e Priscila Dias, sobre experimentações, artísticas ou não, e elas me deram, então, a ideia de fazermos uma sessão de fotos com todas as vontades e pensamentos que tinham envolvido aqueles meus últimos meses de reflexão. Era para ser um projeto pessoal, para eu de certa forma materializar e me rever nesta identidade. 

Aí surgiu o Corpo Caos.

Um registo fotográfico de espaços públicos que ocupei na cidade de Coimbra, (Portugal). Espaços que simbolizam um poder patriarcal, colonial e binário. Espaços em que corpos dissidentes apenas não seriam observades com ojeriza a noite e com as ruas vazias.

Corpo Caos, 2020. Créditos da Imagem: Acervo pessoal.

Agradeço imenso o push que as meninas me deram. Foi um (re)despertar para as artes, um novo desafio na criação da performance, que é basicamente aquilo ao que venho me dedicando nos últimos anos. Corpo Caos foi recebida em uma instalação no espaço expositivo A Camponeza, em Coimbra, durante o mês de outubro de 2021. Era um trabalho que me expunha de uma forma crua e reivindicativa para a cidade. 

No ano seguinte, fui convidada para performar na Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero, na obra Onirocrítica #4: Collective Dreams de Meris Angioletti, uma imersão de nove horas sobre história oral e sonhos. 

Em 2022, fui convidada para uma residência artística no Teatro Acadêmico Gil Vicente, em Coimbra. Gerida pela Coletiva Performática Efêmera, a obra ENDOXA contorno do interior foi materializada em uma performance em quatro atos, onde cada artista representava um elemento, baseada em corpo, consciência e astrologia. Eu fui água.

Vivo atualmente em Coimbra, na República das Marias do Loureiro — uma casa comunitária autogerida, um espaço seguro com perspectiva transfeminista. Estar nas Marias é muito potente! Enquanto escrevo este texto, porém, estou na Islândia. Um país muito curioso e místico? — Não sei. Decidi vir para cá este verão e ficar três meses em uma tentativa de fuga da minha rotina e para focar em mim e no meu processo criativo. Confesso que está sendo um desafio. 

A natureza aqui é plena! Onipresente. 

Cisnes, vulcões, Bjork, verão com frio, água que brota do chão borbulhando a 100°C, caminhada entre cânions… são outros ares, é uma liberdade que flexiona. 

Corpo Caos, 2023. Créditos da Imagem: Maria Eduarda Gragnani

Compondo este texto, percebi que sou péssima em registrar meu trabalho. Tenho de confessar isto. O registro é de extrema importância, pois é o que resta do depois, quando a performance acaba, quando as fotos saem da parede, quando a instalação é desmontada. Registrar é preciso. E tenho de melhorar isto. Fica aqui uma promessa para a minha eu do futuro (dedos cruzados).

Gosto e odeio muito a tecnologia. 

Odeio porque me surta. Amo porque possibilita. Tensionar a memória no universo do digital é incrível. É permitir um fácil e rápido acesso a uma infinidade de dados. Não estou dando uma informação inédita a ninguém, mas isso me espanta as vezes. 

Hoje, com a espetacularização midiática, o novo é cada vez menos novo e as mudanças acontecem com mais rapidez. Com o Corpo Caos, eu tento, sem nenhuma grande ambição, explorar o que eu sinto, o que eu vivo, o que eu gosto, o que me inspira. 

O trabalho de Ana Mendieta foi primordial no meu processo criativo. Essa artista me foi recomendada pela querida Emma Andreetti, que me ajudou a legitimar as experimentações que eu vinha confabulando. 

O meu entorno me inspira, tenho sorte de ter amizades incríveis, ter uma família que tenta me acompanhar. Sempre quero mais, às vezes me sinto frustrada. Espero sentir menos frustrações no meu trabalho e ser menos preocupada com os resultados. 

Deixar fluir e tirar projetos do papel e do Drive. 

 

 

1- Série de trabalhos em processo que envolvem vídeo, fotografia, objetos e instalação.

2- Dois ex-presidentes do Brasil, Getúlio Vargas e João Goulart, nasceram em São Borja. Por essa razão, uma lei estadual (13.041/2008) declarou a cidade como “Terra dos Presidentes”.

3- Denominação dada por suas terras férteis.

4- “Laerte-se”, documentário das realizadoras Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum, Netflix, 2017.

 

Artista e pesquisadora, articula em seus projetos corpos dissidentes, teorias queer e transfeministas.