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novembro, 2023

#castielvitorino #quartodecura
Castiel Vitorino Brasileiro

Movimento, transmutação

Em minha prática multidisciplinar, entre a ancestralidade, a espiritualidade, as artes, a filosofia e a psicologia clínica, estudo o mistério entre vida e morte, a chamada Transmutação, e as formas de se locomover entre essas zonas existenciais. Meu pertencimento familiar na diáspora Bantu-brasileira é o fundamento articulado em pesquisas sobre medicinas e espiritualidade interespecífica (entre formas de vidas diferentes). 

Para mim, não existe separação entre os exercícios da minha criatividade, o meu “Eu” se caracteriza por isso, por compreender que não há separação em nada que existe. Acontecem, sim, distâncias, entre nós, entre nós e eles, entre vocês e eu, e assim vai. Eu posso dizer que essa questão move minha vida, a própria questão do movimento, que é uma questão acerca da liberdade. Liberdade cognitiva e escravidão do pensamento, sem dúvidas essas são questões importantes pra mim, pois giram em torno do fenômeno principal para a minha vida e para a minha comunidade, que são os processos de transfiguração, de metamorfose, de mudança. Ou seja, a possibilidade de mudar a forma de pensar, mudar o modo de agir, e assim preservar os nossos princípios e continuarmos vivos. 

Há pouco tempo, em 2023, encerrei um ciclo no Marrocos, onde morei por três meses, na cidade de Marrakesh. Esse foi o primeiro capítulo do meu projeto atual, de longa duração, chamado “Kalunga: a origem das espécies”(1). Certamente, morar em regiões desérticas, e lá viver essa pesquisa sobre a água, mudou a minha vida. Foi uma oportunidade que criei para estudar sobre abundância, escassez, saudade, intuição, lealdade, felicidade, cores e culinária. Quando chegamos em Marrakesh, o Ramadã estava acontecendo, e isso foi muito importante, fomos inseridas numa história milenar sobre o poder da oração. Ou seja, uma história sobre vibração, meditação, expansão do pensamento, transe, comunhão e fé. Isso é muito importante pra mim e pra minha família, e foi lindo poder viver junto com outras pessoas, essas pessoas fazendo suas orações de suas próprias formas e com objetivos diferentes do meu. Ainda não consigo dizer com tanta profundidade sobre esse primeiro ciclo do projeto Kalunga, mas sim, certamente esse foi um dos momentos mais marcantes de minha vida e de minha carreira. 

Atualmente estou me dedicando a construir uma escola, um lugar onde possamos estudar medicina, arte e matemática. É isso que me interessa no mundo ocidental: construir lugares aqui para nos afastar momentaneamente desta sociedade, mesmo que façamos parte dela. Me interessa guardar meu tempo, algo que tem sido capturado de forma tão violenta. Me interessa guardar a nossa intimidade, que também tem sido cooptada pelo neoliberalismo. 

Nesse sentido, penso que arquivar é um gesto fundamental para a humanidade. Todos os povos guardam suas memórias, e ao longo de suas histórias, vão criando e descobrindo novas formas de fazer isso, de preservar sua memória. A importância é justamente essa, do movimento, é importante ter a possibilidade de ir para frente e para trás sempre que quiser e sempre que for necessário. O Quarto de Cura é um trabalho em processo que produz esse movimento espiralado de ir e voltar, e eu pretendo criar uma quantidade específica de Quartos neste planeta. Essa obra é uma oportunidade de pesquisa e disseminação sobre medicinas demonizadas no nosso atual processo de colonização. São oportunidades para mim e para visitantes de reencontrar com memórias locais, e também para nós criarmos nossas próprias memórias sobre qualquer coisa.

Quarto de Cura na Trienal de Sorocaba (2019). Foto: Acervo da artista.

Neste contexto, minha primeira exposição individual “O trauma é brasileiro” (2) (2019) apresentou um Quarto de Cura, construído com pesquisas sobre a origem de meu sobrenome “Brasileiro”. Ali apresentei muitas histórias sobre cura, histórias criadas pela minha família e por outros moradores da minha comunidade, a Fonte Grande. Vejo que todas as histórias são fundamentadas na lembrança, isso é lindo. 

Recentemente, ajudei um grande amigo a construir um game, o Gabriel Massan, um artista incrível que se dedica às artes digitais. Ele foi convidado pela Serpentine Galleries para construir um videogame. O Gabriel me propôs criar a história do primeiro nível do game, e ele, junto com sua equipe técnica, foram materializando minhas ideias. Foi revigorante para mim, pois nunca tinha passado por essa experiência de criação para o mundo dos games, que é distante de minha prática como artista. Além de minhas ideias sobre o roteiro e ambiente deste universo, também construir alguns diálogos e recitei alguns. Foi muito divertido gravar minha voz e depois muito estranho ouvi-la no jogo! 

Então, o primeiro nível trata-se de uma história sobre chegada em outro lugar, que pode ser um outro planeta, um outro país… e chegando lá o player se depara com uma série de desafios que questionam justamente essa relação de ganho, coleta e perda; e também propomos algumas experiências diferentes para o ”fim” do jogo. O game se chama ‘Third World: The Bottom Dimension’(3) e está disponível para download gratuitamente no site da instituição que comissionou tal projeto.

Referências

*O projeto Quarto de Cura foi apresentado diversas vezes, entre elas na exposição coletiva Malungas (2018), no Museu Capixaba do Negro “Verônica da Pas” (Mucane); na casa de Renato Soares, no bairro da Fonte Grande, em Vitória; e Galeria Homero Massena, como parte da exposição O Trauma é Brasileiro (2019), e na Frestas – Trienal de Sorocaba (2021), Frestas – Trienal de Artes 2020/21 – O rio é uma serpente, com curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza. Fonte: Site da Artista. Disponível em https://castielvitorinobrasileiro.com/.

 

Artista plástica, escritora e psicóloga clínica formada em Universidade Federal do Espírito Santo. Mestra em psicologia clínica pela PUC-SP.