Textos

agosto, 2023

Maria Luiza de Barros

Na arca da minha vó: arquivos, histórias e memórias espaciais para metodologias negras 

De início parecia hoje, mas voltei no tempo e no espaço. Morada de Santa Fé, Cariacica, Espírito Santo, morada também da minha avó Elmira, meu avô Geraldo e da arca: o móvel que contém histórias antes não tão bem entendidas. Lembro que quando criança, a primeira coisa a se fazer ao chegar na casa dos meus avós era pedir “Bença, vô”, “Bença vó” e, na sequência, abrir todas as portas da arca na curiosidade de saber o que havia, pois sempre tinha uma novidade. Agora, em um vislumbre onírico, lá estava eu novamente de frente para aquela presença objetificada em madeira marrom escuro, duas portas superiores e quatro inferiores, quatro gavetas e algumas prateleiras — ou oratório. A arca que ocupa a casa de meus avós desde meados da década de 1990 se situa hoje no meu imaginário presentificado com a intenção de saber de onde ela veio, para onde ela foi, que coisas guarda ali e por que há tantas lembranças com ela.

Na arca da minha avó tinha de quase tudo,

O móvel era também sinônimo de sofisticação, digno de investimento na época, e cenário da maioria dos encontros em família — “só faltava falar”. E quem disse que não fala? O que um objeto como esse, estático e aparentemente comum está dizendo? Onde a memória racial, material e imaterial se encontra com o espaço através da arca e das histórias contidas nela? 

Nos idiomas e linguagens que conduzem as minhas conexões e diálogos interdisciplinares em torno da cidade, a arca é uma interlocutora fundamental que, nos poucos metros quadrados que ocupa, carrega consigo uma imensidão imensurável de representações e significados. Neste contexto, portanto, a arca é um arquivo dinâmico e afetivo que, mesmo na contrariedade da objetificação, me leva a pensar sobre dois pontos: as memórias espaciais e o que inicialmente chamo de “metodologia de ajuntamento” — ambos pela perspectiva negra. Mesmo que faça isso brevemente neste texto, construo essa forma de olhar e pensar a partir de crítica teórica, exercício imaginativo e pesquisa em coisas de família.

Morada de Santa Fé é um dos meus lugares de infância que ainda permanece em mim. Todo mundo tem lugares como esses, onde é possível recordar a si mesmo. E relembrar a si mesma é um bom acordo sobre memória racial (hooks; Wells-Bowie, 1995, p.153). Foi no encontro com a arquitetura e o urbanismo que passei a amplificar esse acordo espacialmente. Nesse sentido, o gesto de abertura da porta da arca contém rastros de como podemos entender as relações culturais, a casa, a cidade e o mundo de maneira a realizar que pesquisar é também criar histórias a partir do que se tem, apesar da ausência natural ou forçada de muitas delas. A arca de madeira era um móvel presente em muitas casas brasileiras, mas, neste caso, tornou-se um objeto de matéria escura que ocupava um ambiente familiar de diferentes maneiras, constituindo, assim, uma memória racial do espaço. 

Digo isso porque pensar a cidade, seja em escala arquitetônica ou urbana, também evoca sentimentos, descrições, sentidos, lembranças e pistas que, apesar do grande esforço intelectual presente há anos nestas discussões da cidade, ainda envolve um campo em disputa política e epistemológica que é atual e contínuo. Nesse sentido, recorro a pesquisadora e amiga de caminhada Gabriela Leandro Pereira que, em interlocução teórica com a professora canadense Katherine McKittrick, nos ajuda a pensar sobre a espacialização dessas memórias a partir de “outras” histórias possíveis:

Pensar o lugar das histórias raciais significa pensar na construção de uma gramática espacial urbana, colocando em xeque epistemologias eurocêntricas e brancocêntricas. Elaborar “outras” cartografias, “outras” narrativas, “outras” gramáticas espaciais pressupõem construir um repertório múltiplo de conversas, conferindo legitimidade, abrindo espaço para outras formas e textualidades que não apenas aquelas dos escritos e grafismos acadêmicos o canônicos. (Pereira, 2021, p. 42)

A autora ressalta ainda a importância de considerar o lugar das histórias espaciais presentes em diferentes expressividades culturais, como na oralidade das conversas com pessoas mais velhas (Pereira, 2021) e, acrescento, presentes em diferentes objetos enquanto símbolos registrados, como uma peça de design doméstico. Dessa maneira, em diálogo com Beatriz Nascimento (2018) (1), é possível afirmar que muitas das memórias espaciais surgem a partir do cotidiano e dos objetos relacionados com as vidas das pessoas em determinado contexto. Mais do que isso, é possível afirmar que, muitas vezes, o que esses objetos representam em determinados espaços ou cultura permanece em percepções fundamentais para a visibilidade histórica.

Ao falar de cotidiano e de objetos encaminho-me, por fim, para o segundo ponto da discussão metodológica, pois ao passo que cartografias, gramáticas e narrativas espaciais são reivindicadas, novos modos e práxis de pesquisa são necessários. A arca da minha avó ilumina parte de um método rigoroso e sofisticado a ser esmiuçado. Trata-se do “ajuntar”, “agregar”, “associar” como um processo de pesquisa fundamentado na associação de diferentes materiais e insumos em variadas linguagens de maneira criteriosamente ordenada. Trata-se, também, de recuperar referenciais pessoais que se somam com o mundo e se apresentam como um instrumento capaz de informar algo. Diferentemente de acumular materialmente, o “ajuntamento como método” me parece esse lugar de camadas de tempos, espaços, técnicas, formas e formatos, vivências materiais e imateriais como prática de vida em moção. O “ajuntamento” me lembra muito da casa de vó e se encontra nas vidas negras que são impetuosas, inquietas e geralmente estão sempre em relação com dois ou mais campos de conhecimento.

Pistas para essa elaboração têm sido compartilhadas com pessoas próximas, inspiradas em outros espaços e pessoas intelectuais negras como, por exemplo, Katherine McKittrick, quem empenha esforços para iluminar algumas das muitas maneiras negras de fazer ciência. Uma dessas maneiras é a vivência de metodologias e mundos interdisciplinares, nos quais pessoas negras reúnem várias fontes, textos, narrativas, grooves, texturas para desafiar o racismo e desmontar as hierarquias coloniais e imperiais de conhecimento (McKittrick, 2022). A meu ver, esse pensamento se expressa em outro exemplo localizado: o Acervo da Laje, um espaço de memória artística, cultural e de pesquisa sobre o subúrbio ferroviário de Salvador. O acervo se expande em práticas curatoriais e educativas em torno de obras de arte inesperadamente espetaculares — uma casa museu que nunca esteve fora do mundo das artes. 

Concluo esta escrita real e imaginativa apontando caminhos especulativos sobre o compromisso a ser seguido com uma metodologia de ajuntamento que evoca presença dentro da ciência ao permitir a construção de práticas espaciais em que memória e história são postas em um movimento não hierarquicamente compartimentado. Hoje, o que resta da arca são pedaços ressignificados e o desejo de sair pela cidade afora na busca do mundo maravilhoso que minha vó me ensinou (2).

Nota final: “Essa noite eu tive um sonho”. Na constante iminência entre estar acordada, dormindo e pensando, o ponto de partida deste texto é um sonho que tive no dia cinco de maio de 2023, no qual a história era composta por uma personagem principal que falava: a arca — o fio condutor para algumas pesquisas em torno da arquitetura e urbanismo neste momento. 

 

Agradeço a minha família pelos esforços em torno da pesquisa e ao meu amigo Caio Silva pelos compartilhamentos sonhados.

1- No texto “Volta à terra da memória”, Beatriz Nascimento (2018) comenta sua percepção sobre objetos (vasos, espadas) que ocupam algumas casas de comunidades quilombolas e são usados para festas, e como essas simbologias auxiliam na documentação de suas pesquisas nestes contextos. Assim, na importância da percepção e licença das diferenças de recortes para a elaboração dos pensamentos, costuro a afirmação apresentada.

2- Adaptado da música “Quem foi que roubou a sopeira de porcelana chinesa que a vovó ganhou da baronesa?”, de Jorge Ben, 1969.

Referências

hooks, bell; WELLS-BOWIE, LaVerne. Architecture in Black Life: Talking Space with LaVerne Wells-Bowie. In: Art on my mind: visual politics. bell hooks. The New Press, 1995.

NASCIMENTO, Beatriz. Volta à Terra da Memória. Em: Possibilidades nos dias da destruição. 1. ed. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018. p. 208. Coletânea organizada e editada pela UCPA.

PEREIRA, Gabriela Leandro. Partilhas afrodiaspóricas sobre arquitetura, urbanismo e racialidade. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 37–47, 2021. 

McKITTRICK, Katherine. Dear April: The Aesthetics of Black Miscellanea. Antipode, 54: 3-18. 2022.

Arquiteta urbanista, pesquisadora cultural, curadora e estrategista de narrativas. Idealizadora da vi.bra.tion, plataforma interdisciplinar de pesquisa para a perspectiva crítica da cidade, arquitetura, linguagem e som. Cofundadora e integrante da coletiva Terra Preta Cidade. Mestre em Geografia (PPGG–UFES) e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (FAU–USP).