Os meninos remavam de maneira compassada, todos tocavam o remo na superfície da água com muita calma e harmonia: estavam exercitando a infância deles no sentido do que o seu povo, os Yudjá, chamam de se aproximar da antiguidade. Um deles, mais velho, que estava verbalizando a experiência, falou: “Nossos pais dizem que nós já estamos chegando perto de como era antigamente” (Krenak, 2022, p. 3).
Na exposição ATLAS ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? (2010–2011), no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri, sob curadoria de Georges Didi-Huberman, a montagem de arquivos visuais pela perspectiva do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, tornou-se notória ao dispor distintos arquivos visuais a partir de certos anacronismos. O procedimento azeitado nos séculos XX e XXI, através de trabalhos para reconfigurar a ordem das coisas, dos lugares e dos tempos, realizou-se por meio do que Didi-Huberman nomeou “afinidades eletivas”. De um certo ponto de vista, podemos afirmar que os arquivos visuais, com os devidos tempos históricos que têm, possuem pesos e acúmulos. Permanecendo no mito de Atlas, que carrega o mundo nas costas, questionamos, então, a partir do que se desdobra da exposição: é possível pesar os arquivos do mundo?
De uma perspectiva ética, em alguns casos isso poderia valer a própria vida, como prova a nebulosa e conspiratória trajetória de Mark Lombardi — artista estadunidense encontrado morto pouco tempo depois de visibilizar arquivos que, evidenciando perigosas conexões político-econômicas entre distintos agentes globais, foram reveladas após seu controverso suicídio. Lombardi se tornou uma proeminente figura da arte neoconceitual, principalmente pelas operações diagramáticas de realizar importantes relações de poder em um mesmo campo visual, como no emblemático caso das contracartografias que conectam as famílias Bush e Bin-Laden.
Mark Lombardi deixa um legado que mensura o mundo, já que evidencia quem pode controlá-lo dando paradoxalmente a estas pessoas ainda mais visibilidade. Sua obra causa, assim, até um certo descontrole: afinal, nesse mundo representado de modo diferente de um globo, lâminas que conectam os grandes poderes globais são formadas. Esse mundo não era levado pelo artista nas costas, mas debaixo dos braços, conforme juntava documentos e informações e organizava-os em envelopes que, por sua vez, desdobraram-se em distintos procedimentos de montagem feitos a lápis em grandes folhas de papel. Trata-se de um outro mundo, o qual é reorganizado por meio de relações de poder. As práticas contracartográficas do artista nos apontam um horizonte ético-político na sua constituição de mundo que nos faz questionar nossa posição ao reorganizarmos o olhar pelo qual investigamos arquivos. Assim, podemos considerar os procedimentos de organização de arquivos pelas práticas contracartográficas como um questionamento que fazemos através de certas posições.
Com a popularização de sistemas de geoespacialização de dados, como já destacado em outras oportunidades (1), o que era segredo tem se tornado excessivamente escancarado. Essa volumosa e ininterrupta profusão de imagens e informações que bombardeiam e visibilizam o mundo requer o cartografar enquanto um ato político para lidar com o peso dos arquivos visuais em inimagináveis conexões de mundos e suas relações escusas. Nos últimos anos, nosso interesse tem sido particularmente os modos com que as práticas contracartográficas podem lidar com arquivos digitais produzidos e disponibilizados em sistemas e plataformas de geoespacialização de informações, bem como as formas a partir das quais podemos desvelar algo que não está sendo visto (ou que talvez até esteja, mas não enquanto perguntas). Temos conectado informações a partir de duas práticas: a cartográfica e a fílmica, visibilizando pesos tal qual os de uma estrutura em ruína, como a da antiga usina Abraham Lincoln produzindo cana de açúcar na Amazônia brasileira, em Medicilândia, no Pará.
Desdobrada em filme, a contracartografia desvela o trecho Altamira–Medicilândia da rodovia Transamazônica, no Pará, tendo como argumento o fato dessa rodovia concentrar distintas e controversas situações desde a sua fundação. Os chamarizes da contracartografia são: o nome Medicilândia, herança do governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969–1974); o fato dessa rodovia estar próxima a Altamira, maior município brasileiro em extensão geográfica, onde foi implantado o marco zero da rodovia, em 1972; e a emblemática presença da usina hidrelétrica de Belo Monte (2011), na bacia do rio Xingu. No vídeo destacam-se os áudios oficiais da inauguração do Projeto Agroindustrial Canavieiro Abraham Lincoln (Pacal), em 1971, com a promessa de garantir empregos na região — um dos principais trunfos do governo de Médici. Na medida em que a usina não dá lucros, é vendida para uma empresa privada que, posteriormente, entra em falência e acaba por devolvê-la à União, em nome do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A usina torna-se, então, uma ruína que pedura até os dias atuais, e a cidade de Medicilândia se torna uma das maiores produtoras de cacau, com exploração e denúncias de trabalho análogo à escravidão.
Essas práticas nos mostram que os arquivos visuais, quando relacionados a partir de certas posições, podem se tornar procedimentos contracartográficos potentes para questionar o peso de se viver em um mundo extremamente desigual, sobretudo desde o Sul global. Elas podem também nos dar pistas sobre como suportar esse mundo ao tornarmos visíveis camadas antes invisíveis para reivindicar outros mundos possíveis, com tudo que ainda precisamos aprender a ouvir, a partir de certas inversões cartográficas e sob o ponto de vista não hegemônico de vozes que desejam ser ouvidas, como as que remam no meio dos rios.